Fronteira, ambientado no final do século 19, conta história da jovem Maria Santa (Débora Gomez), que tem fama de fazer milagres e mora em um casarão arruinado, labiríntico, com dezenas de quartos, em meio a montanhas e muita neblina. A chegada de um viajante (Alexandre Cioletti) e da tia (Berta Zemel) para administrar a santidade da jovem cria contexto que mescla sexo, religião e poder. É filme com cenas de estonteante beleza, plasticidade primorosa. Resultado da combinação de direção de arte e fotografia com história tensa, dramática, atravessada por silêncios, dúbia e perturbadora, até o limite do assustador, enredando o espectador em um universo que tem cenários, contextos e personagens familiares.
A câmara, de muitos movimentos, varre os ambientes pontuando luzes e sombras, texturas, paisagem, faces, atos. Pode-se ouvir as poucas palavras (e muitos silêncios) dos personagens, cantos religiosos, ruídos dos “fantasmas”, o que circula na boca do povo etc. Com enorme perícia, andamento rigoroso e criativo (trabalhando minuciosamente as passagens de cena), Rafael Conde consegue algo impressionante: leva o espectador a se descolar da aparência das coisas e, aos poucos, começar a duvidar do que vê e escuta. Até ficar imerso em suspeita de estar diante da perda de fronteiras entre o real e o delírio. Melhor ainda: o diretor não julga o que apresenta. Instaura, com suavidade, distanciamento crítico, que, sendo envolvente, também faz pensar.
Rafael Conde é autor de curtas primorosos (fez, inclusive, uma edição de seis obras em DVD, que está no mercado). O primeiro longa é o divertido, mas também “exagerado”, Samba-canção. Fronteira é maduro, salto de qualidade notável. Não se trata, agora, apenas de contar uma história (o que, de fato, nunca foi projeto do diretor), mas de criar um universo completo, que, sem artifícios, articula (e ilumina) todo o contexto social, dos aspectos socioeconomicos aos temas do imaginário e da ideologia. Tanto avança na construção de linguagem pessoal quanto revela cultura cinematográfica. É filme autoral, mas sem os cacoetes de linguagem associados a essa expressão. E que tem ousadia, poder de repor a experiência (e prazer) do cinema.
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