Rede de Mentiras




Ridley Scott, diretor de Rede de mentiras, mantém uma relação inusitada com o conceito de autoria. Por um lado, é apaixonado pelas linguagens clássicas do cinema americano e sua estruturação em gêneros. Paradoxalmente, é um rebelde que tem dificuldade em seguir os cânones das linguagens e dos gêneros, modificando-os sempre, muitas vezes de maneira sutil. Alguém pode pensar que essas modificações ocorrem em função de um suposto conteúdo de seus filmes – Blade runner – O caçador de andróides, por exemplo, usaria de maneira incomum a linguagem da ficção científica pela necessidade de adequá-la ao debate proposto pelo filme, sobre a condição humana frente ao amor e à morte. Os que defendem esse argumento simplesmente ignoram as obras menores de Scott, em que ele parece não ter nada de novo a dizer, e mesmo assim renova as fontes do que diz. É o caso da relação entre A lenda e a tradição da narrativa fantástica, ou 1492 – A conquista do paraíso e o filme épico.

Rede de mentiras não foge à regra. Seu eixo é uma trama de espionagem. Mas ao contrário do que é a regra no gênero, ele não se apóia nem no lado glamuroso do herói (modelo estabelecido pelo filmes de 007) nem nas artimanhas e truques de sua profissão (olhar estabelecido, por exemplo, no antigo seriado Missão impossível e suas versões no cinema). O que interessa a Ridley Scott, essencialmente, é o drama do homem dividido entre sua missão e o confronto com as possíveis conseqüências dela. Se temos artifícios e seqüências de ação na trama, não são o objetivo do filme, mas elementos necessários à compreensão daquele drama. Roger Ferris (Leonardo DiCaprio) sente desconforto num jogo em que verdade e mentira se confundem. Deseja confiar nas pessoas mas não pode fazê-lo, porque isso representaria perigo para algumas, porque outras são potencialmente perigosas demais. Precisa desesperadamente conhecer o conjunto de fatos que se ligam a ele, mas a realidade só é dada de forma fragmentária, principalmente num lugar e num momento como o Oriente Médio dos dias de hoje.

Há precedentes, claro. Rede de mentiras é herdeiro da linhagem iniciada com o romance O espião que saiu do frio, de John LeCarré, adaptado para o cinema por Martin Ritt em 1965, no auge da Guerra Fria. A referência é oportuna. Ritt é um dos mais consistentes cineastas da esquerda americana, responsável por obras sobre temas polêmicos nos Estados Unidos, como o sindicalismo (Norma Rae ou Ver-te-ei no inferno), a alienação (O indomado) ou a censura (Testa-de ferro por acaso). O espião que saiu do frio foi um dos primeiros filmes a defender a tese de que as políticas supostamente criadas para defender o ocidente dos comunistas estariam, na verdade, minando os países ocidentais por dentro, destruindo os valores que eles pretendiam defender.

Rede de mentiras traz a lógica de O espião que saiu do frio para os dias de hoje. Roger Ferris e seu chefe Ed Hoffman (Russell Crowe) trabalham para defender os Estados Unidos e o ocidente do terrorismo fundamentalista muçulmano. O problema é que os dois têm olhares distintos sobre como cumprir a missão. Para Ferris, seria necessário compreender a cultura estrangeira – “compreender”, aqui, não apenas no sentido de ter informação sobre ela, mas de entender, tanto racional quanto emocionalmente, sua essência. Hoffman, por sua vez, enxerga apenas o objetivo, é incapaz de se afastar de seus próprios valores para se aproximar dos valores de terceiros. O choque entre os métodos dos dois é a origem de todas as dificuldades de Ferris e da própria missão. E metáfora da maneira contraditória como o ocidente vem lidando com o que lhe parece diferente em outras culturas.

Resenha do Portal UAI.




Puta Que Pariu! Fico sem saber o que dizer desse filme... ele é muito bom!!! Já havia virado fã do ator DiCaprio desde os Infiltrados...
Mas para não ficar "rasgando ceda" demais por aqui, abaixo vai uma resenha com alguns defeitos do filme...
(ah, se você não viu, eu recomendo!)




Nos meses que se seguiram aos atentados de 11 de setembro de 2001, muito se discutiu sobre como Hollywood reagiria aos horrores daquele dia: será que os cineastas eventualmente se arriscariam a abordar o terrorismo como tema de uma superprodução? Diretores como Roland Emmerich voltariam a destruir algum monumento histórico nas telas? Aliás, será que alguém teria coragem de retratar norte-americanos morrendo em explosões, mesmo em filmes de ação corriqueiros? Como já se sabe, estas dúvidas não persistiram por muito tempo – e de O Dia Depois de Amanhã a AS Torres Gêmeas, passando por Vôo 93, Syrian, Duro de Matar 4.0 e O Traidor, logo se constatou que o terrorismo não se transformou em tabu para Hollywood. Ao contrário: se estabeleceu como um forte subgênero.

Este, aliás, é o caso de Rede de Mentiras: por mais que tente se estabelecer como uma produção séria, “pensante”, sobre o tema do terrorismo internacional, o novo filme de Ridley Scott nada mais é do que um thriller comum que, tecnicamente eficiente, diverte e funciona como simples escapismo, embora, no processo, acabe trivializando questões que mereciam ser discutidas com mais seriedade. Com roteiro de William Monaham ( Os Infiltrados), o longa se baseia no livro do jornalista David Ignatius e traz Leonardo DiCaprio como o agente da CIA Roger Ferris, que, enviado ao Oriente Médio para investigar células terroristas, é subordinado ao veterano analista Ed Hoffman (Crowe), que o supervisiona à distância, de Washington. Enfrentando os obstáculos originados por um inimigo que evita deixar rastros digitais num mundo informatizado, Ferris se alia ao chefe da inteligência jordaniana, Hani (Strong), na busca pelo líder terrorista Al-Saleem (Aboutboul), uma versão cinematográfica óbvia de Osama bin Laden.

Sem acrescentar nada de novo ao gênero, Scott já inicia a projeção com o imenso lugar-comum do plano que simula uma imagem de satélite que, vista no telão numa sala da CIA, faz par com os créditos iniciais repletos de estática, chiados e todos os demais clichês que permeiam os “filmes de espionagem high-tech”. Neste sentido, até mesmo a (boa) fotografia de Alexander Witt se restringe ao básico: tons quentes para o Oriente Médio, frios para Washington e uma câmera inquieta que beira a convulsão nas seqüências de ação. Já a montagem de Pietro Scalia, curiosamente, se mostra bem mais contida do que poderíamos esperar, o que é um alívio bem-vindo, já que só faltavam os microplanos de milésimos de segundo de duração para que Ridley se convertesse de vez em seu irmão Tony.

Enquanto isso, Monahan, recém-Oscarizado pelo roteiro de Os Infiltrados, parece menos interessado na intrincada trama que deve desenvolver do que no conflito moral entre Ferris e Hoffman: se o primeiro consegue enxergar com clareza o lado humano da guerra que está travando, já que está em campo e é obrigado a testemunhar todo o sangue derramado, o segundo parece tratar tudo de maneira puramente cerebral, fria e pragmática. Aliás, é este seu distanciamento das vidas que, em última analise, controla totalmente que faz de Hoffman um vilão tão frio quanto Al-Saleem – algo que, infelizmente, o filme parece não compreender, já que trata o sujeito com uma simpatia que jamais reserva ao líder muçulmano. (E não, não acho que Rede de Mentiras deveria olhar com benevolência para Al-Saleem; acredito apenas que Ed Hoffman também merecia ser desmascarado como o crápula que é na verdade.)

Surgindo com a barba desgrenhada que torna seu personagem menos conspícuo naquela região (tarefa também facilitada pela familiaridade deste com a língua árabe), Leonardo DiCaprio oferece um desempenho admirável em sua fisicalidade sem, com isso, ignorar a natureza torturada do agente, que se vê dividido entre seu senso de dever e a consciência de que suas ações muitas vezes se igualam às daqueles a quem persegue. Já Russell Crowe, gordo e grisalho como em O Informante, surge mais relaxado, obviamente se divertindo tremendamente com o cinismo e a arrogância de Hoffman, que, por manter-se próximo à família, pode ordenar a morte de outros seres humanos a milhares de quilômetros de distância sem que isto implique em um maior envolvimento emocional ou psicológico (e vale dizer que, embora seja curioso vê-lo debatendo suas missões pelo telefone enquanto ajuda o filho a ir ao banheiro, este recurso acaba sendo usado à exaustão ao longo da projeção, perdendo parte de seu efeito irônico).

Porém, o personagem mais fascinante de Rede de Mentiras é mesmo Hani, o chefe da inteligência jordaniana vivido com brilhantismo por Mark Strong: extremamente astuto, o sujeito exibe segurança absoluta em suas interações com Ferris e com o arrogante Hoffman, revelando-se – ao contrário dos esperados estereótipos – como aquele que detém o conceito mais rígido de “honra”. Sempre bem informado e eficiente, Hani evita a tortura por compreender que nenhuma informação obtida sob pancadaria pode ser confiável – e sua estratégia para cooptar um integrante da organização terrorista comandada por Al-Saleem revela-se não apenas eficaz, como também sábia e humana. Em contrapartida, a enfermeira interpretada por Golshifteh Farahani (a primeira atriz iraniana a participar de uma produção hollywoodiana em quase 30 anos) revela-se pouco mais do que um simples recurso narrativo, existindo apenas para gerar algum conflito e para ajudar a amarrar o terceiro ato da trama, já que é difícil acreditar que uma garota em sua posição e um agente como Ferris investiriam numa relação fadada ao fracasso e possivelmente à tragédia.[concordo plenamente]

Tentando tornar-se politicamente relevante ao jogar uma fala sobre Guantánamo no clímax da narrativa, Rede de Mentiras é mesmo eficiente apenas como filme de ação – e se não cito também a boa construção de sua trama de espionagem é porque, confesso, seu desfecho covarde e artificial acabou me decepcionando profundamente, comprovando minha impressão de que, no fundo, o que interessava ao diretor e produtor Ridley Scott era mesmo apenas criar um passatempo esquecível que mandasse o espectador para fora do cinema com uma sensação agradável, garantindo a recomendação do boca-a-boca e abandonando qualquer esforço para tornar o projeto minimamente marcante. Neste aspecto, o cineasta alcançou seu objetivo: como diversão, Rede de Mentiras merece aplausos. Isto não impedirá, claro, que ele seja relegado ao esquecimento completo dentro de poucos anos.

[é, eu também esperava um final diferente]


Pablo Villaça, do Cinema em Cena


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