Austrália



Um filme ambientado no mundo da dança de salão (Strictly ballroom), uma nova versão da mais famosa história de amor de todos os tempos (Romeu Julieta), um musical com muito romance (Moulin Rouge – O amor em vermelho) – as três primeiras obras que o diretor australiano Baz Luhrmann assinou eram, nitidamente, filmes “para moças”, daqueles que a maioria dos homens só assiste quando vai levar a mulher ou a namorada ao cinema. Austrália, o novo filme de Luhrmann, segue a tendência internacional de produzir cinema para todos os públicos. Se o eixo principal da história da história é o romance entre a aristocrática Lady Sarah Ashley (Nicole Kidman) e o rude Drover (Hugh Jackman), sua estrutura se apoia em gêneros e temas bem mais ao gosto do público masculino: o western e o filme de guerra.

Os fãs do western vão descobrir, por exemplo, que a primeira parte de Austrália se inspira nitidamente num dos últimos clássicos do gênero, Era uma vez no Oeste, de Sérgio Leone. Como Jill McBain interpretada por Claudia Cardinale neste filme, Sarah Ashley chega de longe para a fazenda de seu marido apenas para descobrir que ele foi assassinado, possivelmente a mando dos que desejam adquirir suas terras – e decide, contra todas as expectativas, manter a terra, conduzir o negócio e enfrentar os poderosos. Não é a única referência – Baz Luhrmann, como boa parte dos cineastas de sua geração, é apaixonado por citações. Os fãs dos filmes de guerra, por exemplo, podem apreciar, na segunda parte da narrativa, sua releitura do ataque a Pearl Harbor em outro clássico, Tora! Tora! Tora!, de Richard Fleischer. E boa parte dos acontecimentos de Austrália serão filtrados, pelos espectadores, pela memória de O mágico de Oz, cuja história é contada por Sarah ao pequeno Nullah – e o menino, em outro momento, assiste a célebre versão cinematográfica realizada em 1939.

Felizmente, essa miscelânea não vira uma colcha de retalhos, mas um épico que pode emocionar boa parte dos espectadores, com mais ar de romance que de conto ou peça de teatro. Austrália tem cenas magníficas, como o estouro da boiada à beira do precipício, o beijo sob as primeiras chuvas depois da estação seca, o retorno das crianças após o ataque japonês a Darwin, o fim do vilão. Baz Luhrmann usa diversos recursos para dar unidade ao conjunto. Primeiro, abusa de sua visão de que o cinema não tem muito a ver com o mundo real – frauda descaradamente a história e a geografia quando elas são inadequadas aos sentimentos que pretende despertar com o filme. Segundo, não tem o menor pudor em utilizar todo o instrumental do cinema para entreter e emocionar o espectador, caminhando em diversos momentos no rumo do dramalhão – e em obediência a seu estilo, recusa-se a esconder esse fato, lembra-nos o tempo todo que estamos assistindo a um épico.

O mais forte elemento unificador de Austrália, contudo, é ideológico. O filme trata da discriminação que boa parte dos australianos preferiria varrer para debaixo do tapete – o fato de que até poucas décadas atrás a população aborígene, que habitava o país bem antes da chegada dos europeus, era vítima de leis que não seriam muito distantes dos estatutos racistas e eugenistas da Alemanha nazista ou da Itália de Mussolini. Sarah e Drover não lutam apenas por si mesmos ou pela fazenda, mas pelo bem-estar de Nullah e dos empregados. Sua expedição conduzindo gado é uma espécie de jornada de fracassados (do ponto de vista da classe dominante no lugar): uma viúva aparentemente inútil, um homem e uma mulher aborígenes, um menino mestiço, um bêbado, um imigrante chinês e um marginal que não consegue se ajustar à sociedade.

Mais que a chuva, é o heroísmo e a tolerância deles que fertiliza a terra e a história, No processo, reinventam a família (não é necessário documento legal ou laço de sangue para que uma família exista, parece dizer o filme) e reinterpretam a história (o estatuto racista, o ataque japonês) e a ficção (O mágico de Oz) de uma perspectiva mítica em que destino e jornada pessoal passam a significar coisas bem parecidas. Dos nomes das personagens e dos lugares às ações das personagens e suas posições sociais, Austrália investe mais nos arquétipos que na individualização – e com isso, é capaz de falar ao espectador sobre o que se esconde na essência das coisas.

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