Foi Apenas Um Sonho



Veio da Academia de Hollywood o banho de água fria que reduziu Foi apenas um sonho, de Sam Mendes, a suas devidas proporções no mercado. O filme vinha sendo apontado como um dos favoritos ao Oscar, mas conseguiu apenas três indicações, duas delas quase inevitáveis frente a sua impecável reconstituição dos ambientes e usos da classe média americana nos anos 1950 (direção de arte e figurino). O mais surpreendente foi o fato de que a academia decidiu indicar Kate Winslet, mulher de Sam Mendes, ao prêmio de melhor atriz por seu desempenho em O leitor (que muitos críticos percebem como um papel coadjuvante), e não pelo soberbo trabalho em Foi apenas um sonho, num gesto de desprezo raro por parte da mais poderosa e diplomática instituição não-comercial do cinema americano.

Nada como um dia atrás do outro para que os artistas se lembrem da fugacidade da glória. Foi a mesma Academia de Hollywood que, na virada do século, elevou Sam Mendes ao status de estrela, concedendo cinco Oscars a sua obra de estreia, Beleza americana, incluindo filme, diretor e ator, enquanto a crítica internacional apontava o filme como a fundação do drama contemporâneo no cinema americano. Umas poucas vozes dissonantes diziam que a gritaria era intensa demais, que talvez Beleza americana fosse muito moderninho na aparência, mas caretão por trás dela. Foi apenas um sonho confirma parte dessas opiniões. É apenas um drama mediano, dirigido por um sujeito que conhece a carpintaria cinematográfica e, algo essencial ao gênero, dirige intérpretes com competência – duas coisas que Sam Mendes já confirmara em seu melhor filme, Estrada para Perdição.

É pena. Porque os temas de que Foi apenas um sonho trata acabam sendo maiores que o filme. A base de tudo são as inquietações usuais de Mendes, como a sujeira que se esconde por trás da aparência de serenidade da classe média americana. Desta vez, o olhar é político. Foi apenas um sonho é obra que percebe como as engrenagens da sociedade se movem cada vez que um indivíduo decidir confrontar suas leis. Ao mesmo tempo, o filme examina os instrumentos de conformação, como a sedução do dinheiro ou do prestígio. Há uma lógica foucaultiana no conjunto: é preciso disciplinar os corpos para conter a transformação das mentes. O processo de conformação seria intrinsecamente violento, e suas vítimas eventualmente se transformarão em instrumentos.

April (Kate Winslet) e Frank (Leonardo DiCaprio) formam um casal bem sucedido, mas insatisfeito com sua vida. Decidem deixar tudo para trás e viver em Paris, para realizar seus sonhos mais pessoais. Quando se preparam para a viagem, Frank recebe proposta de trabalho tentadora e começa a rever os planos. A recuada de Frank o coloca em rota de choque com April e desmonta a aparente harmonia do casal. Sentimos pela queda dos heróis por que percebemos que estão condenados a serem ainda mais horríveis que as pessoas com quem convivem – e que consideram horríveis. Se April e Frank cederem à vida vazia e esperança que desprezam nos que os cercam, acrescentarão a amargura e a frustração de terem consciência delas.

Numa sociedade como a americana, a criatividade só tem valor quando pode ser convertida em dólar, parece dizer Foi apenas um sonho. A revolução que as personagens buscam e o conservadorismo que pode lhes dar segurança convivem nos corpos de Kate Winslet e Leonardo DiCaprio, o que constrói criaturas que, aos poucos, vão sendo dilaceradas. Os dois não são apenas perfeitos como intérpretes. Estão no momento ideal para papéis como esses, ainda belos, mas com as marcas do tempo começando a aparecer. Graças a eles, Foi apenas um sonho é experiência emocionante – aquilo que os bons dramas oferecem, mesmo quando não conseguem ir além.

3 INDICAÇÕES AO OSCAR
• Direção de arte (Kristi Zea e Debra Schutt)
• Figurino (Albert Wolsky)
• Ator coadjuvante (Michael Shannon)

Portal UAI


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