Gran Torino



Clint Eastwood diz que faz filmes inteiramente dedicados ao espectador, desautorizando qualquer interpretação política. Pura balela. Artistas transmitem às suas obras boa parte de seu olhar sobre o mundo. E o olhar de Eastwood é ostensivamente político – o que transforma seus filmes, como Gran Torino, em dramáticos discursos políticos sobre a contemporaneidade.

A dramaticidade de Gran Torino vem do choque entre duas dimensões daquela contemporaneidade. De um lado, temos uma dimensão existencial. Walt Kowalski (Eastwood) está velho. Sua mulher acaba de morrer, seus filhos não se comunicam com ele, o mundo mudou à sua volta, o corpo que um dia lutou na guerra está definhando por causa de um câncer. Nessa dimensão, Gran Torino é um drama que se aproxima da escatologia – trata da vida, da morte, da passagem inexorável do tempo, do sentido da existência.

Um dos itens da lista mencionada acima, contudo, não tem caráter existencial. A mudança no mundo em torno de Walt não é metafísica, mas social. O bairro onde mora empobreceu. A maioria da população é de famílias da etnia hmong, que se refugiaram nos Estados Unidos depois do colapso das forças americanas na Indochina. A princípio, Walt atribui a decadência de seu mundo à invasão de imigrantes. Aos poucos, contudo, descobre que o verdadeiro vilão é o colapso dos valores: o jovem branco que se acovarda diante da ameaça é tão fraco e decadente quanto os imigrantes orientais que perderam os parâmetros de sua cultura sem incorporar novas referências éticas. Walt não é forte porque é branco ou americano, mas porque o debate sobre o que é certo e o que é errado faz parte de sua vida – o que, aos poucos, vai colocá-lo lado a lado com os dois jovens hmong que vivem na casa vizinha, a corajosa Sue (Ahney Her) e seu tímido irmão Thao (Bee Vang).

Walt Kowalski é o último americano da velha-guarda. Sua casa é seu castelo, e ele está disposto a defendê-la até mesmo pela violência, se necessário. Soluciona seus problemas sem precisar da ajuda de ninguém, da segurança do lar até os pequenos consertos. Até mesmo sua jornada de descoberta da velhice e da proximidade com a morte é individual. Nesse sentido, Gran Torino pode ser descrito como sua última jornada pela própria liberdade – aquela em que descobre que individualismo não é necessariamente solidão. O público verá Kowalski, aos poucos, enfrentar seus preconceitos, localizar os verdadeiros inimigos e se lançar à tarefa de sua vida: dar ao inseguro Thao a educação, num sentido ético, que não foi capaz de oferecer aos próprios filhos.

Tudo isso tem elementos comuns com outras obras de Clint Eastwood. Com Menina de ouro, por exemplo, Gran Torino divide o ceticismo frente à crença religiosa como solução para os problemas, e o desengano com a família. No final do filme, o espectador terá a nítida impressão de que Walt está prestes a se tornar Dirty Harry ou o Estranho Sem Nome, personagens de alguns dos filmes de Eastwood no passado. É necessário por um ponto final no confronto que ameaça a segurança de Walt e dos Hmong. Mas a solução será completamente inesperada.

Neste final, contraditoriamente violento e pacifista, Clint Eastwood revela o que suspeitávamos desde o início: que Gran Torino é sua obra mais pessoal, mais confessional, mais autoral. Eastwood é aquela contradição, e diversas outras: um pacifista que construiu sua reputação em filmes violentos, um conservador aberto para a transformação de sua sociedade, um homem duro mas cheio de compaixão pela humanidade. Ao abrir ao público suas fraquezas e contradições, o discurso político que o diretor não quis fazer nos atinge como uma bofetada. Assim como Menina de ouro, também supostamente apolítico, reacendeu o debate sobre a eutanásia, Gran Torino revela a perversidade de uma sociedade construída sobre o ganho individual a qualquer preço, a intolerância e o preconceito, propondo outra, integrada por ações fundadas no altruísmo, no amor e na compaixão. Se isso não é um discurso político, e dos bons, nada mais é.

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