O Dia Em Que A Terra Parou



Hollywood pode ter um milhão de pecados. Estar fora de sintonia com seus espectadores não é um deles. Daqui a poucos dias, Barack Obama vai tomar posse como presidente dos Estados Unidos, mas o primeiro filme da “era Obama” já está em cartaz. É O dia em que a Terra parou, de Scott Derrickson, refilmagem do clássico da ficção científica realizado em 1951 por Robert Wise. Tudo bem que uma ou outra coisa pode ter sido acrescentada à película no último momento – a maneira como volta e meia os diálogos apresentam variação do “nós podemos mudar” de Obama não é mera coincidência. Mas filmes demoram um bocado de tempo para serem realizados – e quando o projeto de O dia em que a Terra parou começou a ser realizado, seus produtores podiam apostar apenas no clima geral e no humor da sociedade americana para saberem se a obra encontraria ou não ressonância nos corações e mentes do público. Ganharam a aposta.

A linha geral do enredo do novo filme é a mesma da versão de 1951. Um alienígena vem à Terra convicto de que, para salvar o planeta, é preciso exterminar a humanidade. Nos anos 1950, o pano de fundo para a narrativa era a Guerra Fria e a possibilidade de holocausto nuclear. Neste início de século, a questão ambiental é o elemento crucial. Nosso visitante, à frente da frota de naves espaciais que se comportam como arcas de Noé, recolhendo exemplares do máximo possível de espécies vivas, está diante de um dilema: se a humanidade continuar se comportando da maneira que conhecemos, o planeta inteiro poderá ser destruído; se a solução final para o planeta for implementada, a espécie humana – e, portanto, uma civilização inteira, será dizimada. Há uma incômoda racionalidade na solução apresentada inicialmente pelo herói: exterminar uma espécie daninha para que não destrua todas as outras é comportamento perfeitamente compreensível para humanos. Seu horror ocorre quando pensamos na humanidade como a tal espécie daninha.

VIOLÊNCIA: A lógica do herói parece ainda mais lúcida quando vemos quem se opõe a ele. A única solução que o governo americano encontra, como sempre, é a da força. Já seria uma solução inútil simplesmente porque o poder de fogo dos terrestres não é nada frente aos alienígenas. Torna-se mais inútil ainda porque sua condução é prejudicada pelos conchavos, as visões limitadas, a burocracia.

A força política de O dia em que a Terra parou vem exatamente do fato de que somos levados a concordar com esses argumentos. Parece justo destruir uma espécie que ameaça a sobrevivência de todas as outras – e, como já vimos, aplicamos este preceito em nossa prática. Não há solução possível vinda de um poder que só confia na força e a utiliza sem o menor descernimento. Concordamos com os argumentos, mas não podemos aceitar a conclusão que se tira deles. Como no mundo real, a solução da trama de O dia em que a Terra parou virá de uma nova racionalidade e uma nova ordem de poder. A humanidade é capaz de mudar quando está à beira do precipício, nos lembra o filme; e a ameaça alienígena se torna, então, metáfora dos abismos com que nos defrontamos na contemporaneidade, e a necessidade da investigação de novas soluções quando as antigas se mostraram ineficazes. Temos o instrumental para isso.

Na versão de 1951, por exemplo, o herói se emocionava ao ler o Discurso de Gettysburg, a célebre fala de Abraham Lincoln, no meio da Guerra Civil, sobre liberdade e igualdade, sobre a supremacia do “governo do povo, pelo povo e para o povo”. “Ele deve ter sido um grande homem”, diz o alienígena ao olhar para a estátua de Lincoln. “O tipo de homem com quem eu gostaria de conversar” – nós todos, provavelmente.

Nas duas versões, O dia em que a Terra parou nos lembra de que alcançamos um nível de civilização em que sabemos o que é certo; só nos falta a vontade de decidir pelo que é certo, e boa parte de nossos problemas partem daí.

ODISSEIA: Como costuma ocorrer em refilmagens, o novo O dia em que a Terra parou não tem o charme do original. Homenageia-o com frequência, desde o nome do alienígena interpretado por Keanu Reeves, Klaatu, até o aspecto inicial do robô, que evoca o do filme antigo. Claro que a comparação é injusta: O dia em que a Terra parou de 1951 é, depois de 2001 – Uma odisseia no espaço, o filme que mais influenciou o imaginário da ficção científica em todo o mundo.

A nova versão conta com seus efeitos visuais mirabolantes – as microcriaturas que destroem tudo o que encontram pela frente, por exemplo, são um achado. Conta também com o que Hollywood faz, atualmente, de melhor – suspense e ação. Mas se legitima mesmo no espaço em que a versão anterior também se fundava: a maneira como nos joga a ideia de que esse não é “nosso” planeta, de que somos apenas alguns dos passageiros da nave terrestre que vaga pelo espaço.

Portal UAI

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